Do que eu ali mais gostava, era de ir
à varanda e me esquecer de tudo a olhar o mar, até de me esquecer, ouvir aquele
rumor líquido, incessante, como se nos chamasse para um abraço sempre final, eu
limitava-me a fechar os olhos, a ouvir aquele apelo, e sonhava-me, quando me
chamavam, para a refeição, arrumar algo, ou qualquer outra coisa, aquele rumor
líquido seguia-me os passos casa adentro, sabê-lo ali, à distância de uma
varanda, era-me suficiente, ainda me lembro, quando, certa noite, estávamos os
quatro à mesa, o jantar quase findo, e o meu pai Este Sábado, vamos ver a nossa futura casa, pelo jeito da minha mãe
pousar os talheres, percebi-lhe a surpresa e a indignação, pediu, em voz baixa
e pausada, que eu e a minha irmã fôssemos para o quarto e fechássemos a porta,
não precisou de repetir, levantámo-nos de imediato e cumprimos a ordem, deitei-me
na cama a pensar o amanhã de então, a minha irmã, três anos mais velha, foi
para a secretária debruçar-se sobre os livros, sempre assim foi, ela debruçada
sobre os livros, eu deitada a olhar sonhos, pouco falávamos, apenas o essencial
de partilharmos lar e família, não podíamos ser mais distantes, ou talvez tudo
fosse uma perspectiva de então, no fundo, cada um busca o sonho como sabe,
ouvimos frases gritadas, mais por parte de minha mãe, de facto, meu pai nunca
gostou de gritos, provenientes da cozinha, Agora,
vais ver casas e nem dizes nada? Mas que brincadeira é esta? Quem tu pensas que
és? Por acaso, és só tu a ganhar? E, já agora, quem te disse que eu quero sair
daqui? Que dizes? Que eu sempre me queixei da pequenez desta casa? E da
poluição do centro da cidade? Fica tu sabendo, que já me habituei. E quem vive
com pouco, a isso se habitua. Sonhos?! Pelo amor de Deus, homem, ainda não
cresceste? Os sonhos são para quem tem tempo para dormir. E, há muito, que eu
deixei de ter tempo para tal. Esquece isso! Não, não vou ver casa nenhuma! E
não se fala mais nisso… O quê? Pensa mas é em juntar dinheiro, não tarda nada a
nossa mais velha está na faculdade… E vai precisar que lhe compremos os livros.
Mal ou bem, esta casa até fica mais perto dos nossos empregos e das faculdades.
A velhice… A olhar o mar… Pelos vistos, agora deste em poeta! Só me faltava
mais esta… Voltamos aos sonhos… Não, não me esqueci… Sabes, ando tão cansada… Acho
que foi a última coisa que ouvi de minha mãe naquela noite, certo é que, Sábado
à tarde, sentou-se, no carro, à frente, ao lado do meu pai, e foi ver a casa,
era um prédio de três andares, em frente à praia, estava quase pronto a
habitar, faltavam uns pormenores, no contexto de obras, falta sempre qualquer
coisa, era uma tarde ensolarada, propícia a passeios, denotei cordialidade nos
gestos de minha mãe, longe daquele azedume, demasiado céptico, da noite de
gritos, há dois dias, na cozinha, a sala e um dos quartos eram voltados a
Oeste, dali em diante, só o mar, assim que assomámos à varanda, eu, pelo menos,
deixei de ouvir o vendedor, creio que minha mãe também, em mim entrava aquele
rumor marítimo para jamais me abandonar, se me perguntarem pelos passos de
minha irmã, nessa tarde, confesso que não me lembro, em mim, apenas o eco de um
rumor líquido, quem o sabe ouvir, guarda-o na alma, foi o que meu pai fez, como
o compreendo, após a visita, os gestos de minha mãe mais serenos, a voz, um fiozito
de anuências, percebi que, à sua maneira, redescobrira o apelo do sonho,
demorou o seu tempo, que se me afigurou sempre excessivo, mas mudámo-nos, fomos
dos primeiros a habitar o prédio, o meu pai escolheu o último andar, como não
podia deixar de ser, do que eu ali mais gostava, era de ir à varanda e me
esquecer de tudo a olhar o mar, até de me esquecer, ouvir aquele rumor líquido,
incessante, como se nos chamasse para um abraço sempre final, creio que ele
também, o centro da cidade ficava a cerca de trinta minutos de camioneta,
rapidamente nos habituámos a este trajecto, até gostávamos, regressar a casa,
ir para a varanda, e ouvir aquele cântico imemorial, qualquer agrura do dia era
logo relativizada, como se um mero objecto fora do lugar, certa manhã,
percebemos movimentação no terreno livre ao lado do nosso prédio, quando demos
conta, tínhamos um prédio ao lado, em verdade, nem nos importámos muito, ao
lado não nos subtraíam, em nada, a vista daquele rumor líquido incessante, até
vimos a coisa pelo lado positivo, mais gente, mais iluminação, logo mais
segurança, e o vendedor, ainda na primeira visita, assegurara que… O tempo
passou, de facto, tudo passa menos o tempo, que continua até um dia, que sempre
nos apanha desprevenidos no quotidiano a que chamamos mundo, minha irmã estava
no terceiro ano da faculdade, em letras, começava a perceber-lhe a fonte dos
sonhos, pois é, cada um tem a sua forma de os buscar, eu indecisa quanto ao
curso a seguir, sempre gostei de contemplar amanhãs deitada, meu pai, nesse
dia, regressava a casa com uma certeza impressa num papel, minha mãe, à entrada
do prédio, com uma derrota impronunciada, via movimentações no terreno em
frente, sim, o que fica a Oeste, desde então, todas as noites após o jantar, os
meus pais permaneciam na varanda, sentados lado a lado, de porta fechada, a
ouvir aquele imemorial cântico líquido, afinal, ao contrário do que proferira
naquela noite, minha mãe redescobriu o tempo do sonho, nunca mais se elevaram
vozes em nossa casa, demorei o necessário até perceber que meu pai amarelecia
ao mesmo tempo que se elevava aquela derrota cinzenta diante de nós, certa
noite, uma ambulância teve de o vir buscar, não conseguia disfarçar mais, minha
mãe pôs-nos ao corrente da certeza impressa que ele trouxera, há uns tempos,
para casa, eu e minha irmã questionámos e questionámos o teor daquelas
análises, tudo em vão, há veredictos que nascem demasiado frios, este foi um
deles, no dia em que concluíram o terceiro piso da derrota cinzenta diante de
nós, meu pai partiu, só minha mãe estava com ele, de mão dada, ouvi as
enfermeiras dizer que a viram abrir a janela, sentar-se, e olhar para os lados
lá do mar…